O dia 25 de maio é uma data marcada no calendário global como o Dia do Orgulho Geek ou Dia do Orgulho Nerd, também reconhecido como “Dia da Toalha”. Esse dia foi escolhido para reverenciar o escritor Douglas Adams, autor de ‘O Guia do Mochileiro das Galáxias’. A comemoração exalta toda a Cultura Nerd, que atualmente detém um espaço imenso e cada vez mais crescente na indústria do entretenimento.
Por Antonio Oliveira, Camila Nascimento e Gabriel Arantes, sócio e advogados especialistas respectivamente.
O universo geek tem deixado marcas expressivas na sociedade, que, às vezes, cruzam também o território jurídico. Tal intersecção gera discussões intrigantes e promove uma inovação jurídica.
Para homenagear o Dia do Orgulho Geek, vamos destacar alguns dos principais casos que causaram impacto tanto na comunidade geek como no cenário jurídico.
O jogo The Last of Us e Elliot Page
O jogo ‘The Last of Us’, lançado em junho de 2013 pela desenvolvedora Naughty Dog, criou uma situação curiosa. Os jogadores notaram que a protagonista, Ellie, tinha feições extremamente parecidas com o ator Elliot Page (que à época se identificava como Ellen Page). A semelhança era tanta que a desenvolvedora, tentando evitar a polêmica, chegou até a alterar um pouco o rosto da personagem no game, mas a mudança não surtiu muito efeito.
À época, o ator chegou a comentar que deveria estar lisonjeado que foram utilizadas suas feições, mas que, por já estar atuando em outro jogo, não tinha gostado da situação. Apesar disso, Elliot não tomou qualquer medida judicial contra a desenvolvedora do jogo.
O caso acendeu uma discussão que dura até hoje, principalmente após o lançamento da série de televisão de mesmo nome do jogo. Poderia a imagem de alguém, ainda que levemente modificada, ser utilizada virtualmente sem a sua autorização?
O direito de imagem, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, possui proteção especial conferida pela Constituição Federal, a qual inseriu tal direito no rol dos direitos e garantias fundamentais, prevendo indenizações em caso de sua violação. O Código Civil, por sua vez, classifica o direito de imagem como um direito de personalidade e dispõe que é vedada a exposição ou utilização da imagem de alguém sem permissão, caso o uso indevido atinja sua honra, boa-fama, respeito ou se destine a fins comerciais. Mas e quando tal uso é feito, como no jogo, com leves modificações?
A discussão é extensa e, principalmente com o crescente uso de semblantes em ambientes virtuais, como o metaverso, a tendência é que se amplie ainda mais!
Os jogos de videogame e o uso de imagem de jogadores de futebol
Os amantes de jogos de videogame de futebol já notaram que, ao contrário do que acontece em times do resto do mundo, as equipes brasileiras presentes nos jogos possuem apenas jogadores genéricos em seus elencos, sem que ocorra a representação, com nome e imagem, de seus jogadores reais.
Isso ocorre devido a uma longa discussão judicial entre os jogadores de futebol que atuam e atuavam no Brasil contra as empresas desenvolvedoras dos maiores simuladores de futebol (FIFA, da EA Sports, e PES, da Konami). Alguns atletas, desde 2015, vem processando as empresas exigindo valores devidos desde 2007, e já conquistaram condenações que giram em torno de 80 mil reais.
A discussão diz respeito, justamente, ao uso das imagens dos jogadores nos videogames sem que haja a autorização dos atletas.
Isso ocorre porque, ao contrário do acontece em outros locais do mundo, no Brasil apenas o próprio jogador pode conceder a autorização para o uso de sua imagem. Na maioria dos outros países, a FIFPro, organização que representa mundialmente os jogadores profissionais de futebol, negocia acordos com as desenvolvedoras de jogos e faz o repasse dos valores pagos aos atletas.
Dessa forma, para que os jogadores pudessem ser retratados nos games, as empresas teriam que negociar e obter autorização, individualmente, de cada um dos jogadores que atuam atualmente no Brasil, o que se mostra quase impraticável.
Enquanto a discussão se arrasta, sem uma aparente solução favorável a todos os envolvidos, os torcedores e gamers continuam sem poder utilizar os atletas que jogam em seus times aqui no Brasil. Uma pena para um mercado de milhões de gamers apaixonados por futebol.
O precedente sobre direitos autorais de tatuagens de jogadores reproduzidas em jogos[1]
Em 2016, o estúdio de tatuagem Solid Oak Sketches, de Nova Iorque, alegando possuir os direitos autorais de tatuagens feitas por estrelas da NBA, sobretudo de LeBron James, entrou com uma ação contra a Take-Two Interactive Software Inc., desenvolvedora do jogo NBA, pela violação dos direitos autorais pertencentes ao tatuador, o autor da obra.
Na reprodução corporal do personagem de LJ no jogo, foram também reproduzidos os desenhos de suas tatuagens, que são específicas e únicas, desenhadas especialmente para ele. O caso levantou questões sobre a representação da arte corporal em jogos, filmes e outras mídias em geral.
Na lei de direitos autorais americana, o uso justo (fair use) ou de minimis significa que o uso de material protegido por direitos autorais é limitado ou passageiro o suficiente para que a permissão do detentor dos direitos autorais seja desnecessária.
Após os trâmites processuais, em 2020 o caso foi resolvido com a decisão da corte, favorável para a desenvolvedora. Na fundamentação da decisão, o Tribunal de Nova Iorque citava que a licença de imagem dada por um jogador, para a reprodução de sua aparência física nos jogos de videogame incluem a licença para reproduzir a tatuagem ou outra representação corporal única, ou seja, os jogadores têm o direito de licenciar as suas próprias tatuagens como parte de suas imagens; e que na experiência de jogabilidade, os desenhos são pequenos e a visibilidade é comprometida, não se tratando de uma reprodução completa ou igual da arte da tatuagem. Sendo assim, a Take-Two Interactive Software Inc. teve reconhecido o direito de reproduzir os desenhos.
A voz de Darth Vader eternizada por IA
Desde 1977, o ator James Earl Jones causava impacto nos espectadores como a icônica voz de Darth Vader, o maior vilão de Star Wars. Em 2022, aos 91 anos, Jones decidiu se aposentar após 45 anos de trabalho na franquia com o cargo de dublador de Vader e permitiu que sua voz incomparável continuasse a ser utilizada, dessa vez por meio de um programa de inteligência artificial (IA).
Assim, Jones cedeu os direitos de uso de sua voz para a LucasFilm, permitindo que o programa chamado Respeecher[2] sirva para preservar e recriar a voz ameaçadora do personagem, com extensão após sua morte. A autorização documental concedida pelo ator abrange qualquer produção futura da Lucasfilm, seja de filmes, séries ou jogos de videogame em que o personagem Darth Vader esteja no contexto.
Uma curiosidade é a atuação de James Earl Jones caracterizado como Darth Vader na década de 1990, no jogo Star Wars Interactive Video Board Game:Assault on the Death Star[3], lançado pela Parker Brothers e Hasbro em 1996.
No jogo, até seis jogadores podiam realizar uma ousada missão na estrela da morte a bordo de um Star Destroyer, como se fossem membros sensíveis à força da Aliança Rebelde. Enquanto isso Vader, dublado por James Earl Jones, tentava atrair os jogadores, através do vídeo do jogo, a se juntarem a ele no Lado Negro da Força, seduzindo-os a usar seus poderes a serviço do Império.
Duna, NFTs e uma gafe de PI
Em um episódio simultaneamente fascinante e peculiar no universo Geek, diversos grupos de investidores têm investido milhões para adquirir peças raras e únicas em leilões. Dentre essas grandes jogadas, uma se destacou pela particularidade de suas intenções. Um grupo de investidores desembolsou US$ 3,04 milhões em leilão para comprar uma rara versão do livro de ficção científica “Duna”. A intenção era transformar o livro em tokens não fungíveis (NFTs) e criar uma série animada. No entanto, a grande confusão se deu quando esse grupo percebeu que o valor pago era apenas pela cópia do livro, e não pelos direitos patrimoniais da obra.
Essa iniciativa partiu de uma organização conhecida como Decentralized Autonomous Organization (DAO), uma entidade que se utiliza de recursos coletivos para adquirir ativos valiosos e realizar a gestão coletiva de decisões. Contudo, em sua ânsia para concretizar seu plano ambicioso, o grupo se deparou com um grande problema: apenas possuir uma cópia de um livro não confere direitos autorais ou patrimoniais sobre a obra.
Esse episódio gerou uma considerável dose de polêmica, de ridicularização e de propaganda gratuita para DAO e seus gestores. Os planos de tornar o livro público, produzir uma série animada baseada na obra e vendê-la para um serviço de streaming – além de apoiar projetos derivados da comunidade – foram imediatamente frustrados. Para realizar tais ações, eles precisariam do consentimento do co-criador. Além disso, precisarão aguardar 70 anos após a morte do último co-criador para que as obras entrem em domínio público.
Essa situação serve como uma grande lição para investidores e entidades como as DAOs. Elas devem prestar atenção especial às leis de propriedade intelectual antes de planejar estratégias ambiciosas em torno de um ativo adquirido. Ao fim do dia, é crucial lembrar que até mesmo as organizações descentralizadas autônomas podem enfrentar sérios problemas em seu processo de gestão. Portanto, elas precisam de maturidade para lidar com o imenso potencial teórico dos ativos intelectuais.
[1] Disponível em: https://comicbook.com/gaming/news/nba-2k-lebron-james-publisher-wins-lawsuit-over-tattoos/. Acesso em 05 de Mai.2023.
[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/james-earl-jones-aposenta-a-voz-de-darth-vader-em-futuros-projetos-da-star-wars/. Acesso em 05 de mai.2023.
[3] Disponível: https://boardgamegeek.com/boardgame/6810/star-wars-interactive-video-board-game. Acesso em 05 de mai.2023.