Peck Advogados

Por Antonio Oliveira, sócio do Peck Advogados.

Segurança jurídica. É um resumo do que a Lei 14.620/2023, sancionada em 13 de julho de 2023, proporcionou ao adicionar o §4º ao art. 784 do Código de Processo Civil, agregando expressamente força executiva aos contratos assinados eletronicamente, mesmo sem testemunhas.

É um adendo muito bem-vindo que harmoniza com o que vemos na prática: um ambiente dinâmico onde negócios jurídicos florescem com segurança e agilidade sob trilhas digitais de auditoria.

Porém, o §4º não muda o status quo da validade dos contratos eletrônicos, que eram e continuam plenamente válidos vez que nada mais são que um negócio jurídico firmado em meio eletrônico, portanto, se submetem a todos os requisitos de validade dos contratos firmados em quaisquer outros suportes: objeto lícito, possível, determinável ou determinado, agentes capazes e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil).

A declaração de vontade também é livre como regra, sendo a forma exigida em lei uma exceção (art. 107 do CC).

Decupemos, então, o novo texto:

“§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura”

O trecho “Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico” nos remete a títulos nato-digitais, mas não restrito a eles. Mesmo documentos digitalizados, se atestados eletronicamente, podem se revestir de exequibilidade.

A prori, essa leitura harmoniza com a realidade dos documentos que transitam em ambiente digital e não conflita com normas vigentes acerca do tema, a exemplo da digitalização de documentos financeiros reguladas pelo BACEN na Resolução Nº 4.474 e na Circular Nº 3.789, ambas de 2016. O que persistirá é a observância de normas específicas de caso concreto.

O trecho “é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei” se socorre da já citada validade ampla da MP 2.200/21 (art. 10, §2º) e da própria liberdade de forma do Art. 107 do CC, ratificando que qualquer método de assinatura eletrônica é hábil a manifestar vontade.

Superada a ratificação da validade ampla das assinaturas eletrônicas, temos o ponto mais “disruptivo” do texto quando dispõe que será “dispensada a assinatura de testemunhas”. Mesmo que de forma condicional, o ponto mina um aspecto formal de constituição do título executivo que já estava – muito – distante do seu próprio espírito.

Pedindo emprestada a definição clássica de Comoglio, a prova testemunhal classicamente se objetiva a “reconstrução histórica ou a representação narrada de fatos relevantes para o julgamento, ocorridos anteriormente e sabidos pela testemunha ou percebidos com seus próprios sentidos”.

Perfeito em termos históricos. Mas cortando para o cenário contemporâneo – e pulando discussões históricas sobre a testemunha ter evoluído como um narrador idôneo ou mera formalidade normativa – negócios jurídicos se desenrolam substancialmente ou totalmente no âmbito digital, sem observadores oculares. Na prática, nem os negócios jurídicos celebrados em papel possuem hoje o luxo da testemunha ocular como requisito formal ou ferramenta de convencimento do que realmente ocorreu na mesa de negociação.

Apesar dessa característica, a construção narrativa do negócio jurídico firmado em ambiente eletrônico é referendada por um narrador bem mais fidedigno: a testemunha-máquina.

A testemunha-máquina hoje nos traz muito mais informações estruturadas que sua contraparte humana, demonstrando de forma inequívoca a ciência sobre determinado conteúdo e a declaração de vontade quanto a determinados termos e condições.

Mesmo esse ponto deve ser observado como a ratificação de uma evolução fática e jurisprudencial e não como uma quebra de status quo por si, embora, novamente, seja muito bem-vinda.

Como lastro dessa construção normativa, levanto o vanguardismo do STJ na figura saudosa do Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, que, já em 2018 e com extrema lucidez, proferiu voto no sentido de que, embora o rol de títulos executivos extrajudiciais deva ser interpretado restritivamente, persistiria a “possibilidade, no entanto, de excepcional reconhecimento da executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual.” (Recurso Especial 1.495.920/DF)

Ainda segundo o Ministro, nem “nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil, inclusive o de 2015, mostraram-se permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido vivida no que toca aos modernos meios de celebração de negócios, que deixaram de se servir unicamente do papel, passando a se consubstanciar em meio eletrônico.”

Ressalte-se que a testemunha-máquina, reconhecida dentro do brilho técnico do Ministro Sanseverino, é a base teórica da dispensa de testemunhas para concepção do título executivo extrajudicial eletrônico, em nada interferindo na exigência de testemunhas para documentos físicos, respeitando o disposto no inciso III, do art. 784 do CPC.

Da mesma forma, o mérito do título segue inalterado, ou seja, a obrigação representada no título físico ou eletrônico constituído, ainda precisa ser certa, líquida e exigível (art. 786 e art. 803, inciso I, do CPC)

Retornado ao texto da norma, o último trecho desde exercício de decupagem é a condicional “quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura”. Tecnicamente, integridade é um pilar da Segurança da Informação e consiste na “inalteração” de termos e registros ao longo do tempo. Qualquer modificação dessas informações – intencionais ou não – seria entendida como uma quebra de integridade.

Evoluímos então ao garantidor deste pilar, que é o provedor de assinatura. Note-se que a expressão provedor de assinatura é ampla. Não foi utilizada pelo legislador expressões como “provedor de assinatura digital” ou “provedor de assinatura qualificada”. A primeira poderia ser entendida como a assinatura com certificado digital, o que restringiria os provedores às Autoridades Certificadoras. A segunda expressão poderia ser entendida no mesmo sentido restrito, porém pegando emprestado a definição da Lei n.º 14.063/20, que define como assinatura qualificada aquela oposta por certificado digital ICP-Brasil. Nenhuma dessas hipóteses é o caso.

Temos que a opção do legislador ratifica a liberdade das formas, podendo ser tal provedor de assinatura qualquer entidade idônea e apta a atestar a autenticidade e a integridade da declaração de vontade oposta em ambiente digital.

Se considerarmos a pluralidade adotada no texto do §4º, uma interpretação restritiva seria inclusive paradoxal. A própria assinatura do GOV.BR – considerada assinatura eletrônica avançada – seria excluída do contexto, vez que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica distinta da assinatura por certificado emitido pela raiz da ICP-Brasil.

Por fim, é fato que a mudança é bem-vinda e alinha a norma à realidade, uniformizando interpretações e proporcionando segurança jurídica, além de ratificar uma inevitável evolução fática e jurisprudencial.

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