Peck Advogados

Na mira das autoridades brasileiras e sob risco de ser bloqueado no país, o aplicativo de mensagens Telegram representa um novo tipo de desafio para a Justiça do Brasil e de outras democracias pelo mundo: como forçar um app “sem dono” a obedecer às leis do país onde ele funciona?

A ideia de bloquear o Telegram no Brasil é considerada uma medida desproporcional e exagerada por especialistas do setor. Por outro lado, o app se recusa a responder às tentativas de contato da Justiça. A falta de um representante da empresa em solo brasileiro é um dos agravantes do problema.

Seria o bloqueio total a única saída? Como resolver essa questão diplomática? Fontes ouvidas por Tilt explicam quais seriam potenciais soluções e ressaltam o que não daria certo.

Telegram e fake news

O Telegram não aplica a moderação do que é compartilhado em sua plataforma, e isso pode ser um problema se pensarmos em discursos de ódio e propagação de fake news. O app diz que, seguindo os “princípios” do seu criador, não lida com o que considera “restrições de liberdade de expressão”.

“Embora bloqueemos bots [robôs] e canais terroristas (por exemplo, relacionados ao Estado Islâmico), não bloquearemos ninguém que expresse pacificamente opiniões alternativas”, diz a empresa, que não respondeu ao pedido de Tilt por um comentário ou entrevista. Logo, desinformação sobre vacinas, covid-19 e fake news que ameaçam eleições acabam entrando no pacote do que o app considera “liberdade de expressão”.

Na Alemanha, um grupo antivacina, que se organizou via Telegram, levou tochas para um protesto na porta da casa da secretária estadual de saúde da Saxônia, Petra Köpping. Os manifestantes chegaram a ameaçá-la de morte.

Assim como no Brasil, o governo alemão também debatia, até recentemente, sobre o que fazer com um app que não tem sede ou representação legal no país, nem respondia às tentativas de contato das autoridades e da imprensa.

Após ameaçar o Telegram de bloqueio, na semana passada, o Ministério do Interior da Alemanha afirmou que teve uma reunião “construtiva” com executivos do Telegram. O que ainda não ocorreu oficialmente no Brasil.

Por que o Telegram não responde?

Por padrão, o silêncio é como o Telegram costuma lidar com inquisições de governos ao redor do mundo. O app já foi bloqueado em ao menos dez países nos últimos anos.

Contudo, em 2019, sob risco de ter sua tentativa de lançar uma criptomoeda barrada, o presidente executivo do app, o russo Pavel Durov, topou participar de uma audiência com a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês).

Em 2020, a Rússia encerrou um bloqueio de dois anos ao aplicativo dizendo que o Telegram finalmente tinha concordado em “combater terrorismo e extremismo na plataforma”. Até então, a empresa se recusava a fornecer ao governo russo uma forma de acessar aos conteúdos compartilhados entre os cidadãos via o app.

Treta diplomática

A possibilidade de um aplicativo estrangeiro acabar bloqueado por não se dar bem com as leis brasileiras não é exatamente novidade. Já aconteceu com o YouTube, em 2006, e com o WhatsApp em quatro ocasiões. Nesses casos, porém, o problema foi solucionado com a promulgação de leis que deixaram mais claras as obrigações de empresas de tecnologia no Brasil.

Após o Marco Civil da Internet e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), as próprias plataformas adotaram regras internas de acordo com a lei brasileira, prevenindo casos de bloqueio.

Ainda assim, segundo a advogada Patrícia Peck, especializada em direito digital e membro do CNPD (Conselho Nacional de Proteção de Dados), há outras maneiras de a Justiça brasileira forçar uma empresa estrangeira sem representação no Brasil a seguir as regras daqui.

Uma delas é a de buscar a cooperação da Justiça do país onde a empresa está sediada —no caso do Telegram, a dos Emirados Árabes Unidos, atual endereço de Pavel Durov. “Se não houver apoio da autoridade local na execução do cumprimento dessa ordem, pode haver uma repercussão em nível diplomático”, diz Peck.

A advogada explica que, se um país se recusa a cooperar com a Justiça de outro, pode dar início a uma crise diplomática que atrapalharia as relações entre os dois. Além do “climão”, crises como essa podem descambar em barreiras comerciais.

Foi o caminho que os Estados Unidos tomaram quando seu governo entrou em choque com a chinesa Huawei. Em 2019, o então presidente Donald Trump proibiu empresas norte-americanas de fazer negócios com a gigante asiática.

Aqui no Brasil, de acordo com a advogada Mariana Sbaite Gonçalves, especialista em direito digital da PG Advogados, só o presidente da República é quem teria competência, por lei, para impor eventuais restrições comerciais a outro país —e as chances de Jair Bolsonaro (PL) fazer algo contra os Emirados Árabes ou contra o Telegram é pequena.

Bolsonaro —que tem milhares de seguidores em seu canal oficial do Telegram— já declarou ser contra o bloqueio do app.

TSE quer falar com Telegram, mas não consegue

De olho nas eleições deste ano, o TSE quer tentar amigavelmente a cooperação do poder judiciário dos Emirados Árabes para tentar um acordo com o Telegram, explica Heloisa Massaro, coordenadora de pesquisa do InternetLab (Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia).

A intenção do Tribunal é incluir a plataforma em seu Programa de Enfrentamento à Desinformação, uma parceria firmada em 2020 entre a corte e empresas de tecnologia como Meta (dona do FacebookInstagram e WhatsApp), Twitter, TikTok e Google para coordenar esforços no combate às fake news durante as eleições.

Procurada por Tilt, a assessoria de imprensa do TSE informou que “nenhum ator relevante no processo eleitoral de 2022 pode operar no Brasil sem representação jurídica adequada”. O presidente da corte, Luís Roberto Barroso, chegou a afirmar ao UOL que iria discutir o assunto com os ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin.

Apesar da pressão sobre o Telegram, Massaro afirma que, sem que a Justiça eleitoral brasileira abra um inquérito envolvendo investigações de potenciais crimes cometidos pela empresa, fica difícil conseguir a cooperação dos juízes de outro país.

No ofício enviado a Durov em 16 de dezembro de 2021, o TSE solicita uma reunião para discutir possíveis formas de cooperação no combate à desinformação —a carta, porém, nunca foi entregue porque ninguém atende no endereço do escritório do Telegram em Dubai.

Quem é o dono do Telegram?

Nenhum país se “responsabiliza” pelo app. No escritório listado como sede do Telegram em Dubai, nos Emirados Árabes, ninguém atende à porta, segundo jornais alemães que enviaram repórteres até o local. Antes, a empresa já se baseou em Berlim, Londres e Singapura.

Quando nenhum país ou estado se responsabiliza pela empresa, uma medida diplomática é ineficaz, diz Yasmin Curzi, pesquisadora do CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da FGV Rio (Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro).

“O que podia ser feito, que são esses contatos para intimação via carta rogatória, já foi feito pelo TSE e pelo Itamaraty. ‘Apertar o cerco’ contra Abu Dhabi [capital e sede do governo dos Emirados Árabes] também seria tanto improdutivo como completamente ineficaz”, diz a pesquisadora.

A natureza “nômade” do app é mais um impedimento a qualquer tipo de ação diplomática.

“[Esta] é uma questão muito importante para se prestar atenção nas crises globais futuras com aplicativos que se tornam globalmente populares e ainda conseguem manter uma base de operações sem ancoragem física e jurídica clara em qualquer jurisdição”, afirma destaca Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro).

Google e Apple podem barrar o app?

Como o Brasil não está sozinho nessa treta global com o Telegram, há quem defenda que uma mudança nas políticas das lojas de aplicativos, como a Google Play Store, do Android, e a App Store, dos iPhones, possa obrigar o Telegram a aceitar moderar o discurso dentro da plataforma.

Foi o que aconteceu no Brasil em 2014, quando o polêmico app Secret foi banido da App Store e do Google Play em meio a denúncias de que estava sendo usado para ciberbullying. A empresa não tinha representação no Brasil e o serviço acabou bloqueado no país pela Justiça.

“A inclusão das lojas na dinâmica do bloqueio também é complicada, não apenas por trazer para a discussão outras empresas, como também por não impedir que as pessoas que já baixaram o app continuem a usar”, diz Souza.

Tanto a App Store, da Apple, quanto o Google Play têm regras para o conteúdo dos aplicativos listados. A loja do Android, por exemplo, proíbe apps que contenham ou promovam pornografia e discurso de ódio —temas de alguns dos grupos e canais do Telegram.

Nessas situações, a App Store exige que os aplicativos devem ter:

  • um filtro automático de “material censurável”;
  • um mecanismo para denunciar conteúdo ofensivo;
  • e a capacidade de bloquear perfis abusivos do serviço.

Procurada por Tilt, a assessoria de imprensa do Google no Brasil afirmou que a empresa não comentaria o caso Telegram. Já a Apple não respondeu até o fechamento desta reportagem.

E o PL das Fake News?

Enquanto isso, tramita no Congresso Nacional o PL das Fake News, projeto de lei que estipula regras para o discurso dentro de redes sociais e apps de mensagens. Se for aprovado como está hoje, os dias do Telegram no Brasil podem estar contados.

Isso porque o projeto de lei prevê que toda empresa de tecnologia estrangeira que queira atuar no país providencie uma representação local, seja abrindo um escritório ou escalando um advogado. O que, por ora, o Telegram não tem.

Resta, então, só o bloqueio total da plataforma? Para Curzi, há outras maneiras de reforçar que a lei seja seguida dentro do Telegram, sem que a plataforma seja banida. O caminho mais adequado, segundo ela, seria o de policiar as pessoas que atuam lá dentro.

“O que é possível fazer, para tentar diminuir os problemas que têm sido observados no aplicativo até as eleições, é a identificação e punição dos candidatos que estão descumprindo as regras eleitorais”, diz a pesquisadora. “Faria muito mais sentido e seria mais eficiente processar os candidatos aqui do que armar um cerco contra a plataforma.”

Entrevista com Patricia Peck, por Lucas Carvalho. Postado originalmente no Tilt

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