Peck Advogados

Não é novidade para ninguém que o futebol é uma das maiores formas de entretenimento no Brasil. O esporte, considerado símbolo da cultura brasileira, desperta o interesse de milhões de pessoas em todo o país, sendo que, segundo pesquisa do instituto “Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica – IPEC”[1], cerca de 75% dos brasileiros possuem um time do coração.

Tamanha popularidade se reflete, igualmente, e naturalmente, no meio jurídico. Entre os autores deste artigo, Antonio Oliveira, sócio da área de Contratos, Inovação e Legal Design no Peck Advogados é torcedor do Fortaleza. Gabriel Arantes, advogado da mesma área, por sua vez, torce para o Atlético Mineiro.

Curiosamente, os dois clubes se enfrentam hoje, dia 24 de outubro, na capital cearense. Além da natural expectativa relacionada ao confronto, que mobiliza duas das maiores e mais apaixonadas torcidas do Brasil, o duelo é fundamental para definir qual equipe conseguirá uma vaga na próxima edição da Copa Libertadores da América, maior competição de clubes da América do Sul.

O ato de torcer nos dias de hoje não se resume apenas a acompanhar os jogos do clube pela televisão (e pelo rádio!) ou ir às partidas no estádio. Diante das diversas possibilidades que a tecnologia nos apresenta, os torcedores podem acompanhar e engajar com seu time em todas as redes sociais disponíveis, como Instagram, Twitter, TikTok, se associar ao clube por meio dos programas de sócio torcedor, fazer o download de aplicativos oficiais, entre outras opções que permitem aos clubes alavancarem suas receitas e atrair sua extensa base de torcedores.

Atualmente, a principal forma de conexão direta com os torcedores é por meio dos chamados programas de sócio torcedor. Esses são programas de associação nos quais o torcedor paga um valor mensal ao clube, tornando-se sócio torcedor e, em contrapartida, tem direito a condições exclusivas, como desconto em ingressos e produtos oficiais, participação em ações e outras vantagens.

No entanto, é importante destacar que a mensalidade não é a única contraprestação oferecida pelos torcedores em troca dos benefícios destacados. Ao realizar o cadastro no programa de sócio, é exigido do interessado que insira uma lista extensa de dados pessoais, como nome, CPF, endereço, dados bancários e muitos outros.

Além disso, ao contrário do que acontecia no passado, quando os ingressos para as partidas e eventos do clube eram obtidos exclusivamente nas bilheterias dos estádios e nas sedes sociais dos clubes, as compras agora são feitas por meios digitais. Para essas compras são exigidos, novamente, diversos dados do comprador, pois raras as plataformas de comércio que não exigem autenticação como prerrequisito da compra.

Com o engajamento, vem também o KYF (Know your Fan, ou “conheça seu torcedor”). A tecnologia permite que os clubes direcionem pesquisas e anúncios diretamente aos seus torcedores por meio de e-mails e de aplicativos oficiais, enriquecendo o perfil de hábitos e de consumo daquele titular.

Diante de tamanho envolvimento entre os torcedores e os clubes de futebol, e o consequente tratamento de dados pessoais, como já destacado acima, é indispensável que os clubes se atentem e se adequem às disposições relacionadas à proteção de Dados Pessoais, em especial a Lei n.º 13.709/2018 (“Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais” ou “LGPD”).

No tocante à LGPD, um dos principais pontos a ser analisado pelos clubes é o enquadramento do tratamento de Dados Pessoais em uma das hipóteses previstas nos artigos 7º e 11º da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Em cada caso, deverá ser avaliada a finalidade pretendida com o tratamento para, então, se identificar a base legal mais adequada.

Por exemplo, nos casos em que o clube solicita os dados do torcedor para cadastro no programa de sócio torcedor, seria possível justificar o tratamento por meio da base legal da “execução de contrato”, prevista no artigo 7º, V, da LGPD.

É possível também, nas hipóteses em que os dados dos torcedores são utilizados para envio de comunicações de marketing, o enquadramento na base legal do “legítimo interesse”, contida também no artigo 7º, inciso IX, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Outro ponto a ser observado pelos clubes, de modo a evitar violações à LGPD e eventuais processos judiciais, é a disponibilização de um canal de atendimento às pessoas físicas cujos dados sejam tratados pelos times.

A LGPD, em seu artigo 18, determina que os titulares[2] terão direito a obter junto ao controlador, aqui no caso os clubes de futebol, informações quanto ao tratamento dos dados pessoais, as quais poderiam ser obtidas no referido canal de contato.

Além disso, no mesmo canal, o titular poderia acionar outros direitos previstos em lei, como ter acesso aos dados sob tratamento e requerer a atualização ou alteração de seus dados pessoais que estejam desatualizados, incompletos ou incorretos.

Atualmente, quase metade dos clubes da série A do campeonato brasileiro não possuem qualquer canal de contato destinado a este fim em seu site institucional ou no site específico do programa de sócio torcedor.

É necessário, ainda, que os clubes se atentem aos princípios trazidos pela LGPD. Em destaque, sem prejuízo aos demais, está o princípio da transparência. O titular só terá controle sobre seus dados pessoais se tiver ciência sobre quais dados estão sendo tratados, para quais finalidades, por quanto tempo e com quem são compartilhados, por exemplo.

Tais informações poderão estar dispostas em política de privacidade a ser disponibilizada nos sites dos clubes e dos programas de sócio torcedor. Apesar de alguns clubes já adotarem tal medida, sete clubes da primeira divisão do Campeonato Brasil ainda não disponibilizam as disposições de privacidade em seus sites.

No caso dos clubes que disponibilizam, não é raro notar a previsão de que os dados coletados pelos times poderão ser compartilhados com patrocinadores e empresas parceiras. É fundamental, nesse sentido, que tal compartilhamento seja essencial para atingir a finalidade do tratamento. Além disso, os contratos firmados com tais empresas devem, obrigatoriamente, conter disposições sobre proteção de dados pessoais.

Outro princípio primordial da LGPD é o princípio da finalidade, ou seja, de que toda a atividade de tratamento de dados pessoais deverá possuir uma finalidade determinada. Isto é, não se pode tratar Dados Pessoais sem saber exatamente qual é o objetivo que se pretende atingir com aquele tratamento.

Em outras palavras, não poderiam os clubes coletar os dados pessoais de seus torcedores apenas porque esses dados poderão ser úteis no futuro para uma finalidade ainda não descoberta. Daí a necessidade de se planejar determinadas ações de engajamento (contratual ou comercial) com cuidado e pensando a privacidade como algo inerente.

Outro princípio a ser destacado é o da necessidade. Esse determina que os dados pessoais tratados são apenas aqueles estritamente necessários para atingir a finalidade pretendida e, caso sejam utilizados dados não necessários, necessário que seja estabelecida avaliação para a definição de quais seriam os dados pessoais realmente necessários no contexto.

Diante das disposições trazidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, é extremamente importante que os clubes busquem se adequar à legislação. Os times possuem sob seu controle uma extensa base de dados pessoais de seus torcedores, a qual possui um valor inestimável para empresas parceiras e patrocinadores.

Muitos dos times de futebol das principais divisões brasileiras são instituições centenárias cuja base de relacionamento é constituída e enriquecida há décadas. Hoje, como em qualquer outra instituição consolidada, a base legada é um ativo intangível valioso e que merece atenção. Administrações, patrocinadores, parceiros e colaboradores se sucedem na rapidez de uma troca de passes e apenas um programa sólido de tratamento de dados, especialmente pessoais, se perpetua em um cenário tão dinâmico.

Por mais que alguns clubes já tenham se movimentado nesse sentido, muitos ainda se encontram inertes no processo de adequação. Se por um lado é compreensível que as diretorias dos clubes dediquem seus esforços ao seu produto principal, que é o campo de jogo, o início da aplicação de multas relacionadas à LGPD pode gerar prejuízos financeiros relevantes aos clubes.

Em um esporte que é definido nos detalhes, e no qual os valores disponíveis para investimento e o planejamento a longo prazo são cada decisivos no sucesso em campo e fora dele, a adoção de medidas que mitiguem os riscos relacionados ao tratamento de dados pessoais podem fazer a diferença na tabela final.


[1] https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2022/07/flamengo-na-lideranca-palmeiras-segundo-time-bahia-negro-os-destaques-da-pesquisa-o-globoipec-de-torcidas.ghtml (Acesso em 23 de outubro de 2022)

[2] Segundo a LGPD, em seu artigo 5º, inciso V, titular é toda pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento.

Por Antonio Oliveira, sócio e torcedor leonino do Fortaleza Esporte Clube e Gabriel Arantes, torcedor do Galo, Atlético Mineiro.

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