Vivemos um momento desafiador, onde nos deparamos com um dilema: a mesma tecnologia que permite o exercício da liberdade de expressão, também pode ser utilizada para distorcer, dissimular, manipular a realidade. Ou seja, para a liberdade de expressar mentiras.
Com o livre acesso às mídias digitais e a democratização da informação trazida pela Internet, uma questão fundamental se coloca: qualquer um pode ser o que quiser – mesmo que isso seja uma mentira. Diante disso, como fica a ética e a transparência no ambiente digital?
Todos temos o direito de escolha, o livre arbítrio. Mas será que queremos mesmo a verdade? O mundo que está refletido em páginas e mais páginas de perfis de pessoas comuns e influenciadores realmente nem sempre condiz com a realidade. Mas deveria? SE a resposta for afirmativa, então esta distorção tolerada e aceita por todos, em termos legais, deveria ser enquadrada como uma fraude. E neste sentido, acarreta consequências e tem grandes impactos sociais e econômicos.
Um dos primeiros sinais de que vivemos uma situação no mínimo estranha é quando identificamos os anúncios de “compra de seguidores” e “compra de curtidas”. Será que uma pessoa com mais poder econômico para realizar este tipo de investimento seria capaz de transformar sua credibilidade nas redes, de se tornar mais querida por todos, mais admirada, sem pagar por isso?
Atualmente, uma das formas para analisar o quanto alguém é relevante é justamente o número de seguidores desta pessoa. Mas este é o melhor indicador? As pessoas (ou robôs) que seguem um influenciador garantem sua credibilidade? E indo além: são realmente influenciadas por eles? O mesmo vale para uma informação, onde o número de curtidas determina o quanto ela terá destaque. Mas este fenômeno pode causar algum tipo de distorção?
Se alguém tem um milhão de seguidores e fosse possível fazer um teste de integridade, mostrando de forma auditável que apenas cem mil seguidores são espontâneos e humanos e os demais são impulsionamentos comprados e/ou são bots, qual seria a avaliação real sobre esta pessoa/perfil?
Já há algum tempo vêm sendo discutido os efeitos desastrosos causados pela desinformação na nossa sociedade digital. Sabemos que existem incontáveis sites propagadores de fake news e verdadeiros exércitos de bots para manipular opiniões. Mas o que me deixa intrigada é ainda tolerarmos práticas enganosas que persistem nas próprias mídias sociais – e que parecem ser plenamente aceitas pelo público, inclusive formadores de opinião, empresas de mídia, agências de comunicação e anunciantes.
Existem serviços pagos para a compra de seguidores, inclusive com “garantia de reposição”. São ofertas e promoções de pacotes de seguidores por quantias ínfimas, que não chegam nem a R$ 10. Quem fiscaliza esse tipo de serviço? E isso pode realmente ser oferecido ou deveria ser enquadrado como uma fraude aos usuários e aos anunciantes?
Acredito que não devemos permitir e tampouco legitimar estes “atalhos digitais” para alcançar popularidade nas redes. Uma marca ética de alto renome por certo tem que ter o direito de saber quantas pessoas reais (não fakes) seguem efetivamente o influenciador que ela está patrocinando. Simplesmente por uma questão de transparência.
Pois mesmo que seja uma tática simples e fácil para aumentar a presença on-line, a obtenção artificial de interações em muitos casos viola as políticas de uso das plataformas e ainda surte o efeito contrário, já que diminui o engajamento.
Para se ter uma dimensão de como é possível distorcer esses números, a consultoria de segurança cibernética Trend Micro fez uma pesquisa chamada “The Fake News Machine”. A projeção mostrou que com orçamentos que começam por US$ 2,6 mil e podem chegar a US$ 400 mil é possível criar uma celebridade digital e até manipular um processo de decisão. Ou seja, é fundamental estabelecer meios de garantir a transparência e a auditabilidade nas mídias sociais.
Outro exemplo emblemático aconteceu em 2018, quando teve início um processo contra o Facebook, acusado-o de inflar as métricas de vídeos e assim prejudicar centenas de anunciantes. Os advogados dos requerentes argumentaram que o problema era em grande parte devido a contas falsas e duplicadas. O problema é que a distorção envolve a atração de cliques, que geram audiência e remuneração.
Se não houver regras mais claras, para tratar especificamente deste novo contexto, que agora está dando mais um salto para o “novo” metaverso, corremos o risco de, em um curso espaço de tempo, ter toda uma geração com muita dificuldade para conseguir discernir o que é fake do que não é. E um perigo ainda maior: valorizar o fake.
Cabe ao Estado definir parâmetros do gerenciamento de riscos para a sociedade. Numa realidade onde os dados são a nova moeda e o consumo de informações é parte dominante na nossa rotina, devemos buscar soluções inovadoras, seja como hard law (regulamentações) ou como soft law (códigos de conduta) para uniformizar o tema e as práticas, garantindo maior segurança jurídica aos usuários e proteção da liberdade e da democracia.
É preciso unir tecnologia e direito com aplicação de mecanismos de transparência nas redes sociais, para que tenhamos o desenvolvimento de uma Sociedade Digital mais ética, transparente, livre, segura e sustentável. Mas é sempre importante voltar à pergunta inicial: toleramos o “fake” porque gostamos e nos beneficiamos dele? Queremos realmente a verdade e a transparência?
Por: Patricia Peck, PhD. CEO e sócia-fundadora do Peck Advogados e professora de Direito Digital na ESPM.
Fonte: Exame